CASA DE FAMíLIA

 

O seguinte trabalho pode gerar gatilhos emocionais, pois discute racismo sistêmico, o privilégio branco e escravidão. Por favor, considere o seu bem-estar ao acessá-lo.


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Neste trabalho o itinerário da imigração de minha família durante diversas relocações ao longo do eixo do oceano atlântico é traçado através da trajetória de uma garrafa que viajou entre os nossos pertences. Depois de quase 40 anos no Brasil, mais uma vez esta garrafa absurdamente retornaria à costa dos Estados Unidos como mostra um dos documentos de despacho de uma embarcação.

Lista escrita à mão pela minha mãe dos pertences de nossa família enviados por navio para os Estados Unidos, em 2012.

Quando foi comprada em 1974, esta garrafa foi enfeitada com um laço de fita para combinar com as cortinas da cozinha no apartamento dos meus pais quando recém-casados. Para minha mãe, ela remete às suas memórias de infância, quando emigrou do Brasil para os Estados Unidos com meus avós em 1946. Esta garrafa representa o café nas manhãs de sábado, quando minha avó servia panquecas quentes cobertas de melado. Para a população negra dos Estados Unidos, esta garrafa é mais um símbolo do racismo e supremacia branca sistêmica nos Estados Unidos.

Mesmo sendo esta garrafa uma representação extremamente ofensiva de mulheres negras, a comercialização desta estatueta racista da marca “Mrs. Butterworth” só seria suspensa em 2020. Um clamor por justiça racial e igualdade varreu os Estados Unidos após o brutal assassinato policial de George Floyd naquele ano. Só então, o preconceito racial materializado em representações estereotipadas que a décadas alimentam a iconografia de produtos alimentícios para inúmeras gerações de americanos, foram considerados inaceitáveis ​​pela sociedade e, portanto, não mais uma fonte de valor comercial para os fabricantes.

Para representar esse desvio gradual das visões racistas da sociedade ainda moldadas em estatuetas de vidro, criei uma sequência de fotos close-up inspiradas na famosa obra de arte de Betye Saar, de 1972, intitulada: “The Liberation of Aunt Jemima”. A sequência de fotografias disponível abaixo, culmina com um reflexo âmbar projetado pela luz do sol. Eu espero que esta imagem evoque a lucidez de autoconsciência, resiliência e representação racial igualitária sendo reivindicada por pessoas de cor na América e no mundo, diante de opressões raciais sistêmicas e seculares.

 

“Her skin is like dusk on the eastern horizon,

O cant you see it, O cant you see it,

Her skin is like dusk on the eastern horizon

… When the sun goes down.

- Jean Toomer, Cane (1923)


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Ao ser transportada para o Brasil, entre os pertences de minha família esta caricatura da “mammy” americana não perdeu seu caráter ofensivo mas adquiriu um significado duplamente insultante, já que transforma-se em uma réplica em vidro da imagem das trabalhadoras domésticas que são parte integrante do ambiente doméstico de uma típica família de classe média brasileira.

O estereótipo da “mammy” americana representado por esta garrafa quando importado para o contexto social brasileiro serve como um espelho da empregada doméstica: subserviente às mulheres brancas, trabalhando em suas casas e cuidando dos filhos. “Ela é tratada como família” é um ditado frequentemente utilizado para negar e minimizar o tratamento injusto de trabalhadoras domésticas e resume o privilégio branco sistêmico na sociedade brasileira.

 

“This image of the Black woman as a ‘mammy’ has been serving as a social control of ‘race,’ gender and sexuality. It is a controlling image which confines Black women to the function of the maternal servant, justifying their subordination and economic exploitation. The ‘mammy’ represents the ideal Black female relationship to whiteness: as loving, nurturing, reliable, obidient and devoted servant, who is loved by the white family.”

- Grada Kilomba, Plantation Memories

 

Estima-se que quase 6 milhões de trabalhadoras domésticas, predominantemente mulheres e negras, trabalhem em uma “casa de família”, tornando o Brasil o país com o maior número de empregadas domésticas no mundo. As demandas por compensações adequadas e direitos trabalhistas são recebidas com resistência por parte da elite branca brasileira. O contínuo desrespeito aos direitos das trabalhadores domésticas enquanto suprem aos confortos do privilégio branco é uma herança moderna da escravidão; uma contínua retenção do arraigado racismo, classismo, sexismo e desigualdade racial do Brasil colonial - a última nação soberana a abolir a escravidão nas Américas.

Infelizmente, minha família não foi exceção, e ao longo das décadas em que vivemos no Brasil, trabalhadoras domésticas esporadicamente trabalharam para minha família. Mas éramos provavelmente a única família que indesculpavelmente exibia esta garrafa em sua cozinha, bem próxima a área de serviço, e não muito distante de um “quartinho de empregada”*.

* Espaços arquitetonicamente projetados para acomodar empregadas domésticas trabalhando em casas de família. São um símbolo da desigualdade e segregação social sistêmica no Brasil. Esta prática está sendo abandonada, especialmente após a pandemia de COVID-19, quando cargos para residência permanente de empregadas domésticas foram substituídos por trabalhadoras diaristas.

 

Uma casa de família em Belo Horizonte, Brasil. Foto de Jennifer Cabral (2009)

 

“…The table was set. Coffee, biscuits and pão de queijo, the regionally famous yucca bread were served. The maid was standing by and waiting. I am the only one who seems to notice and acknowledge the maid’s constant presence. “Why don’t you sit down, have a cup of coffee, and eat some pão de queijo?”- I dared to ask only in my mind. I quickly avert the maid’s eyes in embarrassment. But as everyone else in the room, I go right back to ignoring her - as I was taught to do; as they were told to do; as we continuously, pretentiously and inexcusably choose to do…”

Trecho do ensaio fotográfico: “This House is not yours”. Ensaio completo aqui.

 

A remoção tardia desta garrafa de minhas posses foi seguida pela necessidade de entender o legado matriarcal que me foi passado e o qual escolhi carregar. Nessa busca, mapeei os locais de cada casa de família onde esta ofensiva garrafa havia sido exposta. Encontrei coordenadas que traçavam uma flutuação de riqueza, identidade e poder que minha família havia vivenciado no Brasil, assim como nos Estados Unidos como uma família de imigrantes.

Para representar as múltiplas deslocações da minha família em que esta garrafa foi embalada, transportada e carregada, demarquei as coordenadas de nossas casas com garrafas de mel*. Ao substituir esta estatueta nociva e deixar frascos de mel como vestígio de sua presença, crio uma espécie de oferenda reconhecendo violações aos direitos da mulher vivenciadas nos espaços privados da casa de família brasileira.

*Todo o mel utilizado neste projeto vem de uma organização de apicultores que oferece mentoria à juventude negra chamada Black Bee Honey.

Coordenadas ao longo do eixo do Oceano Atlântico onde minha linhagem matrilinear residiu:

- - - - - - - - - - - - - - - GARRAFA REMOVIDA DE PERTENCES (2023)

40°15'34.2"N 74°44'02.9"W New Jersey (2012)

19°56'12.2"S 43°58'46.0"W Minas Gerais (1999)

19°56'27.1"S 43°56'54.5"W Minas Gerais (1979)

19°56'35.6"S 43°56'18.9"W Minas Gerais (1978)

23°39'23.8"S 46°31'43.4"W São Paulo (1975)

42°31'24.2"N 83°06'11.2"W Michigan (1974)

- - - - - - - - - - - - - - - - GARRAFA FOI COMPRADA (1974)

23°39'37.3"S 46°31'33.2"W São Paulo (1972)

40°44'40.9"N 73°53'00.3"W New York (1970)

40°45'22.8"N 73°52'30.9"W New York (1969)

40°44'40.9"N 73°53'00.3"W New York (1960)

40°45'23.2"N 73°49'19.3"W New York (1958)

40°34'18.0"N 74°08'46.1"W New York (1948)

40°34'29.5"N 74°07'41.7"W New York (1946)

22°54'47.6"S 43°14'34.2"W Rio de Janeiro (1940)

22°54'45.9"S 43°14'31.6"W Rio de Janeiro (1939)

22°54'53.1"S 43°13'56.6"W Rio de Janeiro (1935)

22°49'50.2"S 43°17'23.5"W Rio de Janeiro (1926)

8°03'58.4"S 34°52'45.9"W Pernambuco (1911)

- - - - - - - - - - - - - - OPERAÇÃO DE ENGENHOS DE CANA-DE-AÇUCAR EM PAUDALHO, PERNAMBUCO. (ca. Sec. XIX)

Engenho Santa Rita (1894)

Engenho Água Fria (1894)

Engenho Mussurepe (1881)

Engenho Tapacura

Engenho Bela Rosa

Engenho PixaÓ (1860)

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Ao expandir esse traçado das residências de minha família para além do nordeste dos Estados Unidos e dos bairros privilegiados de um Brasil moderno, cheguei a latitudes outrora dominadas pelas plantações de cana-de-açúcar no nordeste do Brasil.

Estas demarcações se tornam registros, escritos de meu próprio punho, que por décadas do século 19, a “casa do senhor” e nossa casa de família eram imperdoávelmente uma só.

Só consigo deixar estes invólucros e vazios como vestígio em reconhecimento e admissão da prática da escravidão pela linha matriarcal de minha família.

 

“Slavery, colonialism and everyday racism necessarily contain the trauma of an intense and violent life event, (…) the ability to find symbolic equivalents to represent and discharge such a violent reality becomes rather difficult.”

- Grada Kilomba, Plantation Memories (2008).


Coordenadas do Engenho Mussurepe na região de Paudalho em Pernambuco, Brasil.



References:

Bento, C. (2022). O Pacto da Branquitude. Companhia das Letras.

Kilomba G. (2019). Plantation memories : episodes of everyday racism (5th ed.). UNRAST-Verlag.

Mask D. (2020). The address book : what street addresses reveal about identity (First). St. Martin's Press an imprint of St. Martin's Publishing Group.

Mintz, S. W. (1986). Sweetness and power. Penguin Books.

Ribeiro, D. (2020). Lugar de Fala. Sueli Carneiro.

Schwarcz, L. Moritz, & Becker, E. M. B. Brazilian authoritarianism : past and present. .

Toomer, J. (1993). Cane. New York, Liveright.

PEC das domésticas 10 anos depois: 'só queria que tratassem melhor a gente'. Fenatrad. (n.d.). Retrieved April 9, 2023, from https://fenatrad.org.br/2023/04/03/confira-materia-do-uol-sobre-a-situacao-da-categoria-apos-dois-anos-da-pec-das-trabalhadoras-domesticas-pec-das-domesticas-10-anos-depois-so-queria-que-tratassem-melhor-a-gente/

Projeto Querino. projeto Querino. (2023, February 7). Retrieved April 23, 2023, from https://projetoquerino.com.br/


AMERI_CANA


“CASA DE FAMÍLIA" faz parte de uma série de trabalhos chamado AMERI_CANA em que exploro espaços entre mito e realidade, contos e memória, história e fábulas. Nestes casos de família, o inacabado traçado da diáspora de inúmeras gerações deixam lacunas que acolhem a imaginação e ilusórias fantasias de identidade, enquanto documentos históricos eliminam qualquer minimização de nossos ancestrais papéis coloniais - do nordeste do Brasil ao nordeste Estado Unidense - da cana à um sonho de Norte-América.

 

Alguns cursos e orientações online têm sido fundamentais para o desenvolvimento do projeto AMERICANA. Em cada canto do Brasil encontrei um diferente mestrx. Obrigada pelo intenso e mais que necessário aprendizado que vocês têem me proporcionado.

- “Processo Criativos” com o fotógrafo mineiro Eustaquio Neves @EustaquioNeves no @nucleofac

- Curso de Extensão: Saberes Afro-brasileiros: Orixalidade e Reparação Cultural com a mineira Daniela Caetano @escola_livre_de_erer e a paulista Luciana Sapia @lulusapia na @faculdaderudolfsteiner

- Curso “Estratégias de Inserção” no @atelieoriente com curadora @ionnamello

- Curso de arte decolonial no @f508 com o Paranaense Vilson Andre Pereira Gonçalves @TioViso

- Orientação com a cianotipista e antotipista paraibana @livasc (em andamento)

- Fotógrafo Baiano Marcus Soco @marcussoco conversas e trocas “gracas-à-deus” em andamento.