A_CAMADO(A)

 
 

Complete English version available here.

Meu bisavô ficou cego. Não foi um processo gradativo, mas repentino. Ele não seguiu recomendações médicas após uma cirurgia de catarata. Ficou cego porque insistiu em regar o jardim. Isto foi o que me contaram.

Este é um exercício imaginário explorando identidade e auto-definição: Se estivesse aos pés de sua cama, como me descreveria ao me apresentar pela primeira vez ao meu bisaravô, que ficou cego no final de sua vida?

Eu diria: “Sou uma mulher latina de meia idade, cabelos castanhos na altura dos ombros e estatura mediana”. Mas apenas quando me tornei uma brasileira residente na América do Norte passei a me descrever como uma pessoa de cor. No contexto social brasileiro, sou uma mulher branca. Omitir tal descrição, seria não reconhecer que gerações de minha família usufruiram de privilégios em nosso país de origem por causa desta camada de pele mais clara.

“Ser branco consiste em ser proprietário de privilégios raciais simbólicos e materiais.”

Branquitude Estudos sobre a identidade Branca no Brasil - Cardoso, (2017).

 

 

Auto-descrição: um ato politico.

Acesso e inclusão social de pessoas com deficiência visual finalmente estão sendo adotadas em nossas interações sociais, especialmente virtualmente, e convidam que uma descrição física do indivíduo seja oferecida.

Ao descrever-se um indivíduo exerce um ato de auto-definição e identidade, e portanto tal descrição se torna um ato político e social. 


Minha camada de pele se reverte nestas imagens, assim como meu papel na sociedade em que me encontro. Minhas mãos estendidas à beira da cama representam um existir às margens, e a dicotomia deste revezar entre espaços. O inaceitável privilégio branco existente no norte e sul, leste e oeste do território brasileiro, finalmente se desfaz ao transladar hemisférios. A identidade branca e qualquer expectativa à distorcidos direitos de branquitude, finalmente não se sustentam na América do Norte - Aqui, não somos brancos, somos pessoas de cor.

Isto me dá acesso ao rico pertencimento, identidade e comunidade existente dentro da latinidade. E ao mesmo tempo me faz testemunha da disparidade social que é parte frequente da experiência latina operando como capital humano no norte global.

Em hospitais, asilos, moradias assistidas para idosos, assim como grande parte das enfermeiras e assistentes particulares, grandes números de cuidadores no norte global são pessoas negras e pardas imigrantes do sul global.

Até o final de sua vida meu bisavô José Vieira Gomes dos Santos Arcoverde teve uma cuidadora - assim como minha avó nos últimos dias de sua vida, e minha mãe em sua idade avançada. Enquanto acamados, o cuidado, auxílio e amparo foram dados à estes membros de minha família por mãos negras.

Exploro visualmente a ambivalência da minha identidade: uma mulher de cor na América do Norte, e uma mulher branca em meu próprio país de origem. Tento representar visualmente uma parte da privilegiada elite branca que se beneficia de estruturas de desigualdade racial sistêmicas em instituições, incluindo em serviços de saúde, não só no Brasil mas em qualquer outra nação.

Insiro frases extraídas de Saramago não só para representar à súbita perda da visão que acometeu meu bisavô, mas principalmente para expôr a lente distorcida de branquitude que emerge cada vez que histórias de família são narradas sem o reconhecimento das desigualdades raciais sistêmicas das quais gerações de meus ancestrais se beneficiaram.

Adiciono um elemento textual e táctil através de etiquetas em relevo e imagino um perceber sem o olhar, um saber sem o ver. Me questiono sobre o uso do não-ver como metáfora do não-saber, tão permissivamente presente em narrativas capacitistas - uma atribuição dada frequentemente à esta obra de Saramago. Rejeito este uso da metáfora da cegueira e a resignifico - o “mal-branco” da obra passa a ser metáfora do “olhar branco” que sustenta apagamento e exclusão em espaços sociais brancocêntricos que ainda insistem em não admitir que nestes uma “branquidão cobria tudo”.

Ao pé da cama, cada um de meus gestos é uma tentativa de tocar minha ancestralidade no cerne de nossa colonidade para transmutá-la. Sabemos quem somos? Sabemos quem fomos? Eu sussuro: “Saibas quem és” e não mais sejas como fostes.

“Não há vestigio de branco, Nada de nada.”

- Saramago, Ensaio sobre a cegueira, (1995)

 
 
 
 
 
 
 
 

A série A_CAMADO(A) foi lançada durante a exposição coletiva SONHAR FUTURO da galeria carioca Atelie Oriente. A exposição ocupou os jardins da fervilhante Vila Foto em Pauta, epicentro do 12º Festival de Fotografia de Tiradentes de 15 a 19 de março 2023 em Minas Gerais, Brasil.


AMERI_CANA

As imagens chamadas A_CAMADO(A) fazem parte de uma série de trabalhos em que estou explorando espaços entre mito e realidade, contos e memória, história e fábulas. Nestes casos de família, o inacabado traçado da diáspora de inúmeras gerações deixam lacunas que acolhem a imaginação e ilusórias fantasias de identidade, enquanto documentos históricos eliminam qualquer minimização de nossos ancestrais papéis coloniais - do nordeste do Brasil ao nordeste Estado Unidense - da cana à um sonho de Norte-América.